O relato da fuga e da permanência da Sagrada Família no Egito é um particular, que devemos à pena do evangelista Mateus. Neste relato Mateus mostra José no exercício de seus direitos e de suas funções de chefe da Sarada Família. É a ele e que anjo do Senhor aparece, é a ele que o anjo fala, é a ele que vem comunicada a destinação, é a ele que será depois revelada o tempo da volta para Nazaré.
Depois de ter cumprido todas essas prescrições legais, conforme o costume da época, José sem dúvida pensava que era hora de voltar para sua casa, para o seu trabalho do dia-a-dia, mas o evangelista Mateus descreve que, antes da volta para a Galiléia, haverá um outro fato muito importante, onde a Providência divina recorrerá novamente a ele. Através da comunicação em sonho por um anjo, é-lhe indicado o Egito como meta temporária de fuga, ou seja, até que Herodes morresse. Neste detalhe da fuga e permanência da Sagrada Família no Egito, descrito por Mateus, lemos: “Levanta-te, toma o menino e sua mãe e foge para o Egito e fica lá até eu te avisar, porque Herodes está procurando o menino para o matar” (Mt 2,13). A ordem de Deus para se exilar com a família foi cumprida por José imediatamente e com perfeição. “De noite, tomou o menino e sua mãe e retirou-se para o Egito, onde ficou até a morte de Herodes, para se cumprir o que o Senhor havia anunciado por meio do profeta: “Do Egito chamei o meu filho” (2,14-15). Ainda de noite ele empreende a viagem rumo ao desconhecido, seguindo o mesmo destino de Abraão, que se refugiou neste país, e de José do Egito, foi salvo ali das mãos de seus irmãos. Havia muito chão a percorrer, era necessário muita coragem e confiança em Deus, diante da ordem divina de que se exilassem nessa terra estrangeira, pois ali estariam em segurança, e seria dali, daquele país famoso por suas tradições, suas cidades cheias de monumentos solenes e com seus centros culturais e comerciais, que o Senhor seria chamado, como o profeta havia anunciado: “Do Egito chamei o meu filho” (Os 11,1). É por esse motivo que Mateus vê na fuga ao Egito e depois na volta da Sagrada Família à Nazaré, o cumprimento da verdadeira libertação prefigurada pelo antigo Egito e individualizada na expressão de Oséias citada acima.
Na fuga para o Egito, o evangelista se compraz em mostrar o nosso Patriarca exercendo suas funções e direitos de chefe da família que lhe foram confiados. É para ele que o anjo aparece, é com ele que o anjo fala, é a ele que é comunicado o lugar onde devem ir e será depois a ele que o anjo transmitirá o anúncio de retorno à terra de origem.
Deve-se ressaltar também a palavra “Egito” é uma localidade conhecida no AT não tanto por ser o refúgio dos Patriarcas e de outros personagens, mas sobretudo pelo lugar da dura escravidão do povo hebraico, da qual só o intervento divino pode libera-lo. Jesus é considerado por Mateus o verdadeiro Moisés, pois assim como Moisés acompanhou o povo hebraico até a terra prometida, Jesus o supera entrando na terra de Israel (Mt 2,20-21). O Papa João Paulo II colheu esta intenção de Mateus ao afirmar que: “Assim como Israel tinha tomado o caminho do êxodo, ‘da condição de escravidão’ para iniciar a Antiga Aliança, assim José, depositário e cooperador do mistério providencial de Deus, também no exílio vela por Aquele que vai tornar realidade a Nova Aliança”. (RC 14).
Neste mistério também José foi o ministro da salvação fazendo escapar da morte a vida ameaçada do Menino Jesus, como rezamos na oração composta por Leão XIII. Eis um motivo a mais para confiar no Patrocínio de São José, pois ainda hoje temos muitas razões para recomendar a São José cada ser humano, como nos ensina o documento Redemptoris Custos (N 31).
O evangelista nos relata com poucas palavras esta fuga para um país estrangeiro, não entrando em detalhes, não indicando o tempo e nem a forma da viagem, nem tampouco descrevendo as circunstâncias do trajeto. Limita-se a contar-nos o essencial, e o essencial é que Herodes procurava matar o menino Jesus. A atitude de Herodes não era estranha, pois já havia mandado matar outras pessoas consideradas seus rivais. Esse tirano não era benquisto pelo povo, e quando morreu, aos 69 anos, os judeus comentavam aos cochichos que ele tinha se “apoderado do trono como uma raposa, reinado como um tigre e morrido como um cachorro”. Mandar matar todas as crianças do sexo masculino, com menos de dois anos de idade, residentes na pequena aldeia de Belém e adjacências, tinha sido um de seus últimos atos infames, bem condizente com o seu mau caráter.
Para buscar a liberdade em outras terras, a Sagrada Família teve que empreender uma viagem penosa e arriscada, pois o Egito não ficava perto. Para atingi-lo era preciso fazer uma caminhada de cerca de 400 quilômetros . É descartada a possibilidade de que tenham feito essa travessia pelo deserto sozinhos. Certamente serviram-se de pessoas que conheciam esse trajeto para chegar ao objetivo, pois, além do cansaço da caminhada, havia escassez de água, falta de segurança etc. Mesmo os soldados romanos, equipados e treinados para longas caminhadas, preferiam combater a atravessar aquele deserto, conforme relatou Plutarco.
Os acontecimentos durante a viagem pelo deserto não nos foram relatados, portanto não existe nada que possa satisfazer a nossa curiosidade. Só existem piedosas e graciosas lendas, descritas com imagens poéticas pelos apócrifos (Os apócrifos são escritos da mesma época dos escritos bíblicos, ou um pouco posteriores, mas não são tidos como inspirados, portanto não estão incluídos no cânon oficial. Receberam a denominação de apócrifos, ou seja, ocultos, secretos, escondidos, porque não eram de uso público, ou seja, não eram usados oficialmente na liturgia e no ensino). Algumas dessas lendas encontradas no evangelho apócrifo do Pseudo Mateus e no evangelho Árabe da Infância, relatam que animais ferozes os acompanhavam no deserto, que bois e outros animais lhes traziam o que era necessário, ou que árvores se inclinavam enquanto o Menino Jesus passava, ou ainda, que árvores secas, sem folhas, tornavam-se frondosas para abrigá-los em suas sombras. Claro que a Providência Divina não deixou de socorrê-los nessa caminhada. Assim, árvores e palmeiras que se inclinavam para lhes fornecer frutos ou que faziam jorrar água fresca para matar a sede não passam de fantasia dos apócrifos.
Entretanto, a lenda que teve maior repercussão na iconografia e na literatura encontra-se no Pseudo Mateus, nos capítulos 22 e 24. Ele narra que, “enquanto estavam conversando, viram á sua frente os montes do Egito e suas cidades. Com alegria chegaram aos limites de Ermópolis, e entraram em uma cidade do Egito chamada Sotine".
Como não houvesse ali nenhum conhecido em cuja casa pudessem hospedar-se, entraram no templo denominado Capitólio do Egito.
"Nesse templo haviam sido colocados 365 ídolos, aos quais cada dia se atribuíam sacrilegamente honras de divindades. Ora, aconteceu que, ao entrar a beatíssima Maria com a criança no templo, todos os ídolos caíram por terra, ficando completamente estragados e quebrados; assim demonstraram evidentemente que não eram nada”. Prosseguindo a narrativa, diz que “então Afrodísio, governador da cidade, ao saber do ocorrido, dirigiu-se ao templo com todo o seu exército. Os pontífices do templo, ao ver Afrodísio correr ao templo com todo o exército, pensavam que se vingaria daqueles que haviam feito os deuses caírem por terra. Mas ele, ao entrar no templo, vendo todos os ídolos prostrados no chão, aproximou-se de Maria e adorou o menino que ela tinha nos braços. Depois de adorá-lo, disse a todo o seu exército e aos amigos: “Se este não fosse o Deus do nossos deuses, os nossos deuses não teriam caído por terra diante dele, nem permaneceriam prostrados na sua presença, de maneira que, tacitamente, proclamou que é o Senhor deles. Portanto, se não fizermos todos, com maior cautela, o que fazemos aos nossos deuses, poderemos incorrer no perigo de sua indignação e irmos todos ao encontro da morte: como aconteceu ao Faraó rei do Egito, o qual, não dando atenção aos múltiplos prodígios, foi submerso ao mar com todo o seu exército. Então todo o povo daquela cidade acreditou, por meio de Jesus Cristo, no Senhor Deus".
É interessante notar que esta descrição, imaginária ficou imortalizada no mosáico da abside da basílica Santa Maria Maior de Roma, onde está representada a cena de Afrodísio. Essa mesma realidade religiosa também é lembrada na prática de piedade das “Sete dores e alegrias de São José”, que lembra a alegria de São José “ao ver cair por terra os ídolos dos egípcios”.
Quanto ao lugar onde a Sagrada Família viveu no Egito, não é possível precisá-lo. Mateus é tão genérico neste ponto que podemos concluir que bastou José chegar à fronteira do Egito, ao sul de Gaza, em direção a Wadi Aris, para estar seguro, fora do domínio de Herodes. Contudo, são diversas as localidades que disputam a honra de ter hospedado a família imigrante de Nazaré. Entre elas destacamos Heliópolis, lugarejo distante 10 quilômetros de Cairo. Também no vilarejo de nome Matarieh, próximo do Cairo, num lugar denominado “Jardim de Bálsamo”; são venerados um antigo sicômoro, conhecido com “árvore da Virgem”, e uma fonte, cuja tradição busca uma interpretação no “Evangelho árabe da Infância”, explicitando que a Sagrada Família se dirigiria ao sicômoro hoje chamado Matarieh e Jesus fez com que ali brotasse uma fonte, na qual a Senhora Maria lavava as suas fraldas. Do suor de Jesus, que se espalhou, proveio o bálsamo da região (c 24). Hoje nesta localidade está erigida uma igreja dedicada à Sagrada Família. Ainda em Cairo, entre as várias igrejas edificadas, uma das mais importantes é Abu Sargha, construída segundo a tradição no lugar onde morava a Sagrada Família. Outras localidades se contentam em ter a honra ao menos da estada da Sagrada Família. Entre elas citam-se Bubaste, Bilheis, Pelusio e Koskam. Os elementos convencionais nos quais essas tradições se apoiam são quase sempre uma árvore, uma fonte ou uma igreja com uma referência clara a lendas apócrifas.
Pouco nos importa saber o lugar onde residiram o certo é que foi neste país, poderoso por causa de seus exércitos ágeis que a Providência os colocou por algum tempo, alojados provavelmente em um dos bairros hebreus, situados numa cidade próxima à fronteira oriental. Numa dessas localidades os “hebreus podiam encontrar auxílio e conforto junto aos compatriotas que viviam naquele país, famoso por suas tradições antigas, por suas cidades de monumentos solenes e por seus centros culturais e comercias onde pulsava a vida do grande mundo. No ambiente onde a Sagrada Família passou a viver, assim como em todo o Oriente, iniciara-se o culto ao imperador e o número de ídolos era bastante elevado: adorava-se o carneiro, o abutre, o crocodilo, o falcão... Além do mais, existiam um vasto domínio de magia e de superstições, especialmente no interior”.
Com a solidariedade de seus compatriotas, José encontrou um lugar para instalar-se com a sua família e deu início à nova vida em terra estrangeira, sem despertar nenhuma atenção para os israelitas que ali viviam. Juntos, os israelitas em país estrangeiro formavam uma associação mais bem estruturada e funcional do que na sua própria pátria, pois, pressionados pelas circunstâncias, precisavam ajudar-se mutuamente para subsistir.
O tempo foi passando e o exílio determinado pela Providência chegava ao fim. Segundo uma das versões mais prováveis, dois anos após a matança dos inocentes, Herodes morreu depois de uma doença dolorosa e repulsiva. Livre do tirano, o Anjo apareceu novamente em sonho a José no Egito e lhe disse: “Levanta-te, toma o menino e a mãe e retorna à terra de Israel... José levantou, tomou o menino e a mãe e foi para a terra de Israel. Mas, tendo ouvido que Arquelau reinava na Judéia em lugar de seu pai Herodes, teve receio de ir para lá. Avisado em sonho, retirou-se para as bandas da Galiléia, indo morar numa cidade chamada Nazaré” (Mt 2,20-23). Solicito como sempre, José preparou tudo, pegou o menino e sua mãe e se pôs a caminho em direção da sua terra de origem. Voltar para a sua terra era, sem dúvida, motivo de grande alegria, porém o clima por lá estava tenso e semeado de discórdia e violência. A política não andava bem as revoltas e a guerra civil havia causado muitas mortes. Arquelau, que assumira o governo da Judéia em lugar de seu pai Herodes da mesma forma um tirano, com sede de poder, e sua fama de atrocidades havia chegado também ao Egito. O povo acabava de sair das mãos de um sanguinário e começava a sentir na carne a dureza de um novo despotismo. José ao tomar conhecimento de todas essas péssimas notícias, sentiu medo e, como pai, temeu pela vida do menino. Como bom israelita, gostaria de no retorno, passar por Jerusalém, visitar o Templo onde ficou distante de seus olhos durante o período de exílio e dar graças ao Senhor antes de iniciar a sua nova vida em Nazaré, mas novamente Deus fixou os rumos da sua vida, comunicando-lhe que se dirigisse diretamente a Nazaré, evitando assim qualquer risco de vida para o menino. Os primeiros anos da vida de Jesus haviam sido cheios de intranqüilidade. Agora, na pacata Nazaré, rodeado por seu ambiente familiar, José podia viver mais sossegado.
É importante destacar um fato particularmente significativo nesta moldura do exílio. Tanto a ordem de refugiar-se no Egito como de retornar à pátria não foi transmitida a Maria. E sim a José, o que evidencia o reconhecimento da sua autoridade ou jurisdição paterna sobre Jesus. Neste acontecimento particular, José exerceu plenamente a sua paternidade, a sua missão de chefe da Sagrada Família e esposo de Maria. Nesse fato vemos a sua participação e colaboração clara e precisa no mistério da redenção. A ele foi confiado o início da nossa redenção, conforme rezamos na oração da coleta da missa do dia 19 de março. José foi ao mesmo tempo guarda legítimo e natural, chefe e defensor da família divina, ministério que exerceu durante toda a sua vida.
Questões para o aprofundamento pessoal
1. Leia e tome conhecimento do relato de Mt 2,13-18, além do motivo da perseguição de Herodes, qual outro o evangelista indica para esta fuga?
2. Qual é a importância da atuação de José neste fato?
3. Tome conhecimento de alguns relatos fantasiosos dos apócrifos durante a fuga da Sagrada Família para o Egito?